Por Manoela Afonso
PA1-13, gravure sur bois et pointe séche, 25cm x 60cm, 2013
Diô Viana: um artista em deslocamento
Santarém, Rio de Janeiro, Paris, Campinas, Brasília, México: esse, ao menos até o momento, é o percurso de Diô Viana. Artista brasileiro nascido na cidade de Santarém, no Estado do Pará, desde menino estabeleceu uma relação muito íntima com a floresta amazônica. Em companhia dos amigos de infância costumava fazer verdadeiras incursões floresta adentro sem ao menos imaginar que essa vivência iria influenciar profundamente a sua produção visual anos mais tarde.
Diô Viana faz parte de uma classe de artistas à qual denomino 'andarilha' e é por isso que me apropriei dos versos do mais famoso poema de Antonio Machado para compor esse texto. Diô possui muitos quilômetros percorridos, diversas texturas, cores, sombras e luzes já vistas e sentidas, muitos espaços tornados afetivos. Sua Amazônia pueril transformou-se numa 'floresta do mundo'. Agora ela é uma paisagem híbrida resultante do cruzamento de diversos odores, sons, temperaturas e mat(r)izes adquiridos no decorrer dos percursos. Cada nova parada modifica seu olhar e, consequentemente, seu trabalho ganha e perde elementos, evidenciando, assim, a transformação constante em sua produção visual.
"Caminante son tus huellas
El camino nada más;
caminante no hay camino
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar"
Certa vez, quando Diô mudou-se para o Rio de Janeiro, o artista Dionísio Del Santo lhe disse: "(...) cor a gente não ensina, a gente descobre! Porque as minhas cores são as minhas cores, as tuas cores são as tuas cores". E Diô descobriu, sim, as suas cores. São as cores de Santarém que se misturaram às do Rio de Janeiro, Paris, Planalto Central e às de outros lugares já vivenciados. Quais serão as cores, odores e sabores que o México agora lhe reserva?
Além de pintor, desenhista e gravador, ele é também um impressor profissional que atuou junto a importantes artistas brasileiros, dentre eles Marília Rodrigues e Fayga Ostrower. "Todo gravador deveria saber um pouco de impressão. Saber explorar os potenciais de expressão da própria placa. Isso é bem importante. Você pode interferir de maneiras diferentes e acrescentar coisas na placa para enriquecer uma gravura", declara Diô.
Sua gravura carrega um "fazer" e um "pensar" muito específicos e que, em parte, somam à sua produção gráfica um caráter também pictórico. Com a maturidade poética adquirida depois de tanto caminhar, Diô Viana se permite experimentar materiais e suportes e exercitar procedimentos que extrapolam preocupações puramente técnicas presentes na gravura tradicional. O artista procura explorar ao máximo o potencial de expressão de uma matriz em busca de uma visualidade gráfica significativa.
Segue, logo abaixo, um pouco do pensamento e da trajetória de Diô Viana. Esta entrevista foi realizada em 2006, em Brasília, antes da partida do artista para o México.
Manoela: Você foi impressor de grandes gravadores do Rio de Janeiro. Qual foi a sua primeira experiência em arte e quando se iniciou esse trabalho de impressor?
Diô: Eu comecei a ser impressor quando comecei a fazer gravura. Minha primeira experiência com gravura foi num curso que fiz em Belém, em 1982. Depois fui embora para o Rio e fiz curso de xilogravura durante um bom tempo. Como sempre me dediquei muito, sempre caí de cabeça nas coisas, depois disso já comecei a trabalhar como impressor de xilo.
Manoela: Você contou, em certa ocasião que, quando menino, fazia verdadeiras expedições com seus amigos pela floresta amazônica e que sempre gostou demais disso tudo. Por que, de repente, essa vontade de mudar para o Rio de Janeiro?
Diô: Eu trabalhava em Belém e nas férias eu ia para o Rio visitar minha irmã que morava lá. Depois do convite para trabalhar no MAM eu só voltei para Belém para deixar o meu emprego - do qual eu já tava de saco cheio mesmo - e fui para o Rio fazer gravura.
Manoela: Então você foi para o Rio em busca da arte?
Diô: Sim. Meu projeto, quando saí de Belém, era de ficar na casa da minha irmã no Rio, aprender o máximo de gravura e depois voltar para Belém e ser artista. Vendi minha moto, peguei o décimo terceiro, FGTS, vendi minhas coisas todas e fui. Cheguei ao Rio com vontade de viver gravura.
Manoela: E como foi sua inserção no meio artístico carioca?
Diô: Na época conheci Carlos Martins, que me apresentou para a professora de gravura do ateliê do MAM. Fui lá, mostrei umas gravuras minhas bem ruins até - umas gravuras bem amazônicas, muito próximas da gravura primitiva, ingênua. Ela gostou e me chamou para trabalhar lá. Imediatamente pedi para ser monitor, porque assim poderia fazer os cursos de graça. E fiz vários: xilo; serigrafia com Dionísio Del Santo (que me chamou pra imprimir um pouco com ele); desenho; gravura em metal. Essa época no MAM tinha uma galera que agitava bastante e que se projetou muito: era o pessoal da Geração 80. Um ano depois conheci a Ana Carolina no Parque Lage e ela me deu um grande impulso nessa época. Eu me inscrevia em tudo quanto é ateliê para trabalhar. A Anna Letycia eu conheci no Ingá e como eu não tinha dinheiro para pagar - e eu não gostava de freqüentar sem pagar - ia lá apenas uma vez por mês, fazia um pouco de gravura e aproveitava para conversar com ela e mostrar o meu trabalho.
Manoela: Como foi sua relação com Dionísio Del Santo?
Diô: Dionísio foi um dos motivos que me levou ao Rio de Janeiro. Fui bater na porta dele e falei: "quero estudar com você". Ele disse para eu me inscrever no curso dele no MAM. Ele ria porque eu ficava muito em cima, queria aprender tudo, fazer tudo. Eu disse a ele: "eu te acho um cara fantástico e acho que você é o cara que mais domina a cor no Brasil". Eu era muito ingênuo; quando conheci a arte eu me apaixonei, larguei tudo e fui ser artista. Então eu ainda tinha aquelas idéias de que para fazer pintura é preciso conhecer cor, etc, naqueles esquemas ortodoxos da arte. Quando falei para ele: "quero que você me ensine a técnica da cor, como se mistura as cores, a combinação entre elas...". Ele olhou pra mim, riu e disse: "você quebrou a cara porque cor a gente não ensina, a gente descobre! Porque as minhas cores são as minhas cores, as tuas cores são as tuas cores". Foi um cara que me ajudou bastante.
Manoela: Você trabalhou no Sesc Tijuca?
Diô: O ateliê do Sesc Tijuca foi o primeiro projetado para ser um ateliê de gravura, com vidros para isolar o ácido, prensa elétrica, bancadas organizadas de maneira que os alunos pudessem trabalhar tranqüilos; foi projetado junto com o gravador para saber de suas necessidades. Era um ateliê muito ativo no RJ e estavam precisando de um assistente. Então, a Ana Carolina me chamou pra trabalhar lá e foi uma grande oportunidade, trabalhei com carteira assinada e meu projeto de voltar para Belém foi por água abaixo. Trabalhei durante 4 anos das 8 da manhã às 6 da tarde no ateliê de gravura, preparando verniz, papel e ácido, regulando as prensas, enfim, era um trabalho de aprendiz como o da gravura da idade média, o aprendiz que entra para trabalhar com os mestres. Havia também o Domingo Arte: uma vez por mês havia uma atividade artística em torno da gravura, exposição, workshop. A cada exposição o artista era entrevistado por um crítico de arte, um gravador e um escritor. Todos esses depoimentos resultaram nos 3 volumes do "Gravura Brasileira Hoje", que reúne importantes registros da história da gravura brasileira. E isso me permitiu conviver com todos esses artistas. Foi um grande aprendizado, uma grande diversidade para mim. Cada um deles me ensinou uma coisa diferente. A minha gravura nessa época vivia em completa mutação e tudo o que eu aprendia eu queria aplicar no meu trabalho.
Manoela: Então você conseguiu ganhar a vida como artista?
Diô: Sim. E ainda surgiu a oportunidade de trabalhar como impressor. A primeira pessoa com quem eu trabalhei foi Marília Rodrigues. Entre 89 e 97 eu ganhava a vida dando aulas ou como impressor de vários artistas. Carlos Martins me passava muita impressão de gravura. Nessa época eu ia trabalhar também três vezes por semana com a filha do Carlos Oswald. Eu fazia impressões para ela e organizava e catalogava os desenhos de seu pai. Em 92, Anna Letycia me indicou para dar aulas no ateliê do MAM. Minha vida era uma loucura, eu vivia correndo de um lado pro outro, foi uma época em que eu vivi o máximo da gravura carioca. Foi uma experiência muito boa ter próximas de mim pessoas como Fayga Ostrower, por exemplo. Quando cheguei ao Rio para estudar gravura, muito tímido, nunca pude imaginar que tudo isso aconteceria... Uma vez, por volta de 85 ou 86, participei de um congresso de arte e assisti a uma palestra da Fayga... fiquei maravilhado! A Fayga era uma pessoa inalcançável para mim. Mais tarde, quem diria que eu estaria imprimindo suas matrizes, três vezes por semana! Quando eu estava ali sentado com ela almoçando, nem podia acreditar.
Manoela: A impressão foi uma atividade marcante em toda a sua trajetória. Como ela influenciou o seu trabalho?
Diô: Todo gravador deveria saber um pouco de impressão. Saber explorar os potenciais de expressão da própria placa. Isso é bem importante. Sem ficar nessa história de que se reproduz apenas o que está gravado. Você pode interferir de maneiras diferentes e acrescentar coisas na placa para enriquecer uma gravura. Eu utilizava muitos recursos da impressão na minha gravura preguiçosa: utilizava chine cole, rolos, pochoir, essas coisas todas. E de uma placa completamente inexpressiva eu conseguia tirar o máximo.
Manoela: Como foi para um gravador iniciar-se em pintura?
Diô: Sempre gostei de pintar e desenhar. Fazia pintura sobre papel. Comecei a fazer incursões mais fortes na pintura em 89, quando fui para o Parque Lage, com Daniel Senise, Milton Machado e Beatriz Milhazes. Depois parei o curso e resolvi ser auto-didata. Insisti vários anos com o pincel e, conversando com o Armando Mattos, que é gravador e pintor e coordenava o ateliê de gravura do MAM, ele dizia: "pô cara, você não pode querer ser pintor quando você é gravador. Você já é gravador há muito tempo, a gravura está enraizada em você. Você tem que assumir o teu papel de gravura na pintura! Tem que ser gráfico! O que é pintura? A pintura hoje em dia não é mais a pintura de cavalete; você faz tudo: rasga, corta, grava, cola, arranha, passa cera, prega, amarra, a pintura é tudo isso. Você só vai conseguir se resolver como pintor no dia que você agir na pintura como você age na gravura". E aí caiu a ficha. Então fui largando os pincéis e ousei mais na pintura de uma maneira gráfica. Eu nunca tinha exposto pintura, só fui ter coragem de mostrar alguma coisa lá na França em 2001, num salão, e ganhei o primeiro prêmio.
Manoela: Como foi para um desenhista e gravador conviver com a arte contemporânea carioca nessa época?
Diô: Nos anos 90 eu andava numa crise com o meu trabalho, porque sempre trabalhei com um tema ligado à Amazônia e essa coisa ligada à cultura popular e às raízes não era bem vinda. Eu até fiz incursões na arte contemporânea; na verdade eu tentava deixar de ser regional. Mas às vezes eu ia para Belém e ficava lá três meses para me reciclar, para respirar. Depois casei e fui morar na França. Ainda passava por essa crise com o meu trabalho, a crise de querer ser contemporâneo. Lá pude ver o quanto pode ser maléfico esse desejo de ser globalizado. Eu fiquei me perguntando: por que me criticavam quando eu pintava peixes, capivaras? Diziam que eu era regionalista. A contemporaneidade, essa linguagem universal, às vezes me parecia uma cópia do que era produzido na Europa. Mas os europeus estavam representando a cultura deles. E nós aqui no Brasil? Isso é pior que ser regionalista; é ter uma postura de colonizado. E quando cheguei lá e vi tudo isso, joguei tudo pro canto, fiquei quase um ano sem trabalhar, olhei muita coisa minha, nessa época vi muita exposição, muita gente boa, e as coisas começaram a se acomodar, as fichas foram caindo, depois comecei a retomar meu trabalho, comecei a ficar mais seguro do que eu estava fazendo.
Manoela: Você tem algo a dizer aos jovens artistas?
Diô: Na França eu tinha um amigo pintor de origem húngara, era um cara de muito talento, um artista que foi à Paris para ser um grande pintor, mas não conseguiu e acabou virando aquele artista que faz tudo. E conversando com ele falei: "cara, não sei o que fazer, meu trabalho tá empacado, dá uma olhada nas minhas coisas, me dá um conselho". Eu achei que ele ia olhar meu trabalho, ia falar pra eu seguir essa ou aquela linha, eu tava precisando de alguém que me dissesse isso. Ele olhou e falou: "segue teu instinto que você vai descobrir". Então, o que tenho a dizer é que o mais importante é não associar o seu trabalho aos artistas ou ao movimento ou ao que está acontecendo em arte. Vai fazendo. Não se deve prostituir o trabalho, tem que deixar ele acontecer.
Manoela Afonso
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